Confira, a seguir a íntegra da entrevista concedida pela Reitora Roselane Neckel ao Diário Catarinense

17/08/2013 18:43

Há um mês, a reitora Roselane Neckel respondeu a algumas perguntas encaminhadas pelo Diário Catarinense sobre o papel da universidade. Hoje, parte da entrevista foi publicada no caderno Cultura. Reproduzimos a íntegra do que foi enviado ao jornal. Confira:

DC – O formato da universidade é quase o mesmo desde os anos 60. De que maneira ela acredita que a universidade poderia se modernizar?

R- O formato da universidade hoje é um formato moderno em relação à universidade  medieval. Hoje a universidade funciona por meio de estatuto e regimento próprios, em  consonância com a legislação vigente. Além disso, é importante lembrar que a universidade já  passou por várias mudanças. A reforma universitária de 1968 criou o núcleo comum e não  havia vestibular para cursos específicos. Os alunos entravam cursavam o básico e depois, em  função de suas notas, escolhiam os cursos. Isso, segundo depoimentos, gerou uma “relação de  competição” entre os estudantes, reforçando o individualismo e criando um conjunto de  estudantes que formaram os “excedentes”, que não tinham escolha. A pressão social, na  época, exigiu transformações, de modo que se voltou a fazer a escolha no vestibular. (ver fotos  no livro da UFSC sobre as provas coletivas:  http://www.agecom.ufsc.br/files/2010/12/Livro_UFSC50Anos_2010_web.pdf).

As reformas de ensino no Brasil, mais detidamente a reforma de 1968, foram realizadas em nome da modernização da universidade brasileira. No entanto, essas mudanças pouco  contribuíram para uma formação que estimulasse e fortalecesse o trabalho coletivo. As  políticas educacionais na ditatura militar enfatizavam o conhecimento técnico em detrimento  da formação de cidadãos. Foram criadas as disciplinas “Estudo dos Problemas Brasileiros” e “Educação Moral e Cívica”, as quais destacavam especialmente “que o povo brasileiro é por natureza ordeiro e pacífico”.

Nesse contexto, podemos nos lembrar da expansão do ensino privado, que mais tarde a Organização Internacional do Trabalho regulamentaria como uma mercadoria. No ensino privado, as pessoas não são tomadas como cidadãos que aprendem a pensar livremente  através da recepção de um conteúdo que lhes possibilite ver os problemas humanos em
sociedade numa dimensão ampla, mas são transformadas em consumidores de conhecimento. Veja só que absurdo você transformar o conhecimento numa mercadoria e a pessoa, numa consumidora! Por esse modelo ocorre, portanto, a adoção de uma universidade dentro de um modelo mercadológico.  Cabe destacar um aspecto positivo dessa modernização: a quebra da estrutura que mantinha a
cátedra. Na cátedra, um professor era dono de uma cadeira e não permitia que houvesse renovação do conhecimento porque ele determinava quem deveria sucedê-lo na administração daquele conteúdo; não permitia nem que houvesse concurso para professores, seus auxiliares, sem que ele determinasse quem deveria ocupar a vaga.
Outro aspecto importante reside no fato de a universidade passar a integrar, dentre suas funções, a combinação de ensino, pesquisa e extensão. Quebrou-se aquele viés da universidade apenas reprodutora de conhecimento, como se o conhecimento fosse objeto de um grupo de privilegiados. A universidade se modernizou e pôs-se ela mesma a pesquisar, a reproduzir e a disseminar o conhecimento, porque foram criados organismos que tanto financiavam quanto regulavam a produção científica no País. Outro aspecto importante que não devemos esquecer é que, para atuar na universidade, não bastava somente você ser um  grande conhecedor de um assunto; exigia-se a qualificação profissional para o exercício da  atividade no magistério superior. Com isso, foram criados e ampliados os cursos de pós-graduação pelo País afora.Adotou-se a estrutura departamental. Com isso também houve uma modernização na legislação não só intrauniversidade, mas também nas relações de trabalho, no exercício do serviço público federal. É claro que outros fatores contribuíram, mas o resultado disso é expresso na Lei 8.112/1990, que regula as relações profissionais no serviço público, e isso  também passa pelas relações de trabalho dentro da universidade. Se hoje você me dirige uma pergunta querendo saber como a universidade poderia se modernizar, eu primeiro perguntaria: modernizar-se para qual lado e para atender a quais interesses? Porque isso há de servir a algum objetivo e porque isso deve ser pensado para que  não ocorra confusão com o uso das nossas palavras.Hoje eu posso falar com toda clareza que, se há um clamor por modernizar a universidade, essa modernização pode muito bem ser canalizada em esforços para que todas as pessoas que atuam não só na universidade mas em todo o serviço público exerçam atos transparentes e com uso transparente dos recursos públicos, na democratização das tomadas de decisão e no fortalecimento do interesse coletivo em relação ao interesse individual, de grupos e corporações. A universidade é mantida pelo povo brasileiro, por todos que pagam impostos –portanto, desde aquele que recolhe papelão nas ruas até o grande empresário. Dessa forma, o seu retorno social também ter que ser amplo, atingindo todos os grupos sociais. A universidade não pode continuar a ser reprodutora das desigualdades sociais. A Lei de Cotas é importante nesse processo. Uma universidade pública não pode ser acessível apenas para aqueles que têm condições econômicas para frequentar as melhores escolas e, dessa forma,garantir seu acesso a essa instituição. Enquanto isso, o jovem com fragilidade socioeconômica tem como opção o ensino privado, pagando uma mensalidade. Por exemplo, ao cursar um curso de Medicina utilizando o FIES, o aluno pode, depois, quitar a dívida, mas terá que prestar  serviços no SUS durante oito anos.

DC-  A universidade poderia se tornar mais democrática e ter uma maior participação dos  alunos e da sociedade em suas decisões? Como isso poderia ser feito?

R- A universidade é uma prestadora de serviços essenciais à sociedade, porque ela produz, sistematiza e dissemina conhecimento. O que é uma universidade democrática? Aquela que tem estatuto e regimento? A universidade federal brasileira os tem, e mais, está regida por legislação federal. Quando clamamos por democracia na universidade, temos que cuidar para que ela não fique engessada, com os usos abusivos da democracia, a ponto de não se fazer  nada e, para cada decisão a tomar, ser necessário consultar um fórum. A UFSC cumpre todas as deliberações das Câmaras e do Conselho Universitário. O que é ser democrática? Na Universidade Federal de Santa Catarina se exercita o poder político de forma democrática. Ouvimos todos os setores envolvidos nas questões que lhes dizem respeito. Temos limites de ordem legal a cumprir que nos mobilizam no exercício do poder, o que extrapola em muito a boa vontade e a vontade pessoal de quem exerce o poder. Pela legislação vigente, temos participação de todos os setores da universidade, com as categorias representadas nas instâncias. Uma maior participação depende muito da vontade política de cada categoria. Eu defendo não só a ampliação da participação das pessoas na vida da instituição, no processo deliberativo decisório; defendo que mais gente possa atuar nas discussões e nas deliberações. No entanto, isso não depende somente da minha boa vontade.

DC – Conversei com um professor que acredita que a universidade corre o risco de se tornar irrelevante para a sociedade por não responder às necessidades dela. Você acredita que a UFSC responde às necessidades da sociedade?

R- A universidade que administro e na qual atuo não tem o risco nem remoto de se tornar irrelevante, porque se hoje temos uma universidade que teve aumento de 20% em relação ao  vestibular anterior, que registrou 30.388 candidatos inscritos para uma vaga em 2013, certamente não está nesta rota de perda da relevância. Muito pelo contrário. Isso sinaliza que a UFSC está cada dia mais em sintonia com a realidade do nosso estado e do País. A UFSC mantém sua importância na sociedade porque se presta a questionar e a apontar soluções para os problemas reais que afligem a realidade em que está inserida, por meio da atuação competente de seus profissionais, independentemente da área e da função em que atuam. A universidade hoje realiza inúmeros projetos, para atender tanto ao desenvolvimento tecnológico dos setores produtivos como a projetos sociais que atingem milhares de pessoas.  Quero lembrar que a universidade forma, por ano, mais de três mil profissionais que se espalham por toda a sociedade. Formamos engenheiros, médicos, professores e tantos outros profissionais. A grande modernização da universidade, além da formação de qualidade no conhecimento específico, é principalmente “formar cidadãos preocupados com o mundo em que vivem e com seus semelhantes”. É essencial para o mundo que os projetos pedagógicos dos vários cursos incluam perspectivas que reflitam sobre a sociedade individualista e valorizem processos de formação com foco na constituição de pessoas preocupadas com a coisa pública, com responsabilidade cidadã, formando cidadãos. Esta seria a grande modernização em nossas universidades e na educação brasileira.

P- Você acredita que os cursos devem existir em função da demanda de mercado de  trabalho?


R- Não. Acredito que uma universidade deve também criar cursos que busquem atender às necessidades do mercado, mas não deve atuar única e exclusivamente nesse sentido. Existem profissões muito importantes, como a de professor, que hoje não tem valorização significativa no mercado, mas é a base de todo o desenvolvimento de todas as profissões. Sem professores não teríamos outras profissões.

P- Quais foram as maiores mudanças da UFSC de 1960, quando foi fundada, para cá?

R- Administrativamente, foram várias mudanças impactantes. Por exemplo, em 1980 o reitor administrava para uma comunidade de 14 mil pessoas; hoje, administro para 50 mil. Na UFSC
dos anos 60 e 70 não havia concursos públicos como temos atualmente para servidores técnico-administrativos; as pessoas ingressavam por contratação simplificada. Os professores  já ingressavam por concurso. Os salários eram pagos em envelopes diretamente no Departamento de Pessoal. Não havia o controle do Ministério da Educação e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão pelo SIAPE; os benefícios e os cálculos eram realizados dentro da instituição. Na parte acadêmica, foram muitas as mudanças. Hoje a UFSC conta com  98 cursos de graduação presenciais e a distância, 34 especializações, 57 mestrados acadêmicos, 12 mestrados profissionalizantes e 54 doutorados, com uma complexidade nos processos formativos que envolvem estruturas físicas e profissionais altamente qualificadas. Também a construção do HU como hospital-escola foi significativa para o fortalecimento dos cursos de saúde. Atualmente a UFSC é multicampi: temos os campi de Florianópolis, Joinville, Curitibanos, Araranguá e, em 2014, o campus do Médio Vale do Itajaí. Novos cursos, novas vagas públicas, muitos cidadãos, mais oportunidades de formação com responsabilidade e compromisso social.

P- Que cursos você acredita que podem passar a existir num futuro próximo?

R- Inicialmente vamos consolidar os cursos já existentes. Todas as decisões envolvem contratação de profissionais técnico-administrativos em educação e professores. São vagas que precisam ser liberadas pelo Ministério da Educação e pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Os departamentos também podem avaliar a possibilidade de criação de novos cursos com os quadros de pessoal já existentes e encaminharem propostas à Câmara de Graduação, que avaliará a qualidade, as condições estruturais (prédios e equipamentos) e condições orçamentárias para sua criação. Já foi apresentado e oficializado o Curso de Graduação em Medicina no campus de Araranguá para 2016, com foco na formação na saúde coletiva e na saúde da família. Além disso, nosso curso de Medicina poderá ter uma ampliação de 60 vagas em 2016, mas esta é uma decisão que ainda deverá ser analisada, tendo em vista a necessidade de ampliação de infraestrutura física e de melhorias significativas no Hospital Universitário. Podemos, no futuro, pensar em biotecnologia, biomedicina ou fortalecer áreas de conhecimento em cursos já existentes, como agroecologia, nos cursos de Ciências Rurais, sustentabilidade ou desenvolvimento de tecnologias para pequenos proprietários ou microempresários.

P- Existem planos de abertura de novos cursos ou de outras vagas nos cursos já existentes? Quais?

R- Estamos trabalhando na abertura de novos cursos e vagas no campus do Médio Vale do Itajaí e também na expectativa de abertura do curso de Medicina no campus de Araranguá, além da ampliação de vagas para o curso de Medicina em Florianópolis.

P- Qual você acredita que seja o objetivo da UFSC como universidade?

R- A UFSC tem por finalidade produzir, sistematizar e difundir o conhecimento; fazer ensino, pesquisa, extensão. Esta é sua função. Qualquer outra função, atribuição ou objetivo que se queira atribuir à UFSC é especular e fugir das suas atribuições. Nesse sentido, a UFSC é a melhor, se não a maior referência para o povo de Santa Catarina. E qual é seu mérito nisso? Seu mérito consiste em cumprir bem seu papel na sociedade brasileira. Ter ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão que repercutem no Brasil e no exterior. O impacto de sua atuação é medido pelo número de egressos e de nossos técnicos e professores que atuam pelo mundo afora. Este é seu objetivo: servir à sociedade.